segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Universo das Horas - de Luciana Carrero, Crítica Especializada

Universo das Horas, uma expressão liricamente metamorfoseada
                                       
 Ione Marisa Menegolla*

Os poetas são, aliás, os que mais
sofrem a angústia da temporalidade,
angústia que está sempre ligada ao
sentimento de “finitude” concretizada
na morte.                
                  Fernandes da Fonseca

Não há quem não se torne poeta,
quando tocado pelo amor.
                                                 Platão

Escrever sobre o livro de poemas Universo das horas, de Luciana Carrero, editado no final de 2013, cria-nos compromissos inadiáveis. Mesmo sabendo, de acordo com Eduardo Lourenço, que: em sentido radical não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo. O que nos incita a vasculhar os meandros da produção estética e tentar incorporar a emoção poética.
O que começou por nos atrair e acabou por prender a nossa atenção foi e é o que aflora da poesia de Luciana, uma intolerância quanto à complexidade do tempo e da existência humana. Nesse contexto, o alcance estético e o poético se entrelaçam com liberdade, sensibilidade, espiritualidade e saber.
A obra da autora reflete uma emoção como expressão didática. A meditação sobre o tempo, o homem e os valores opera-se pela via do sensível; porquanto é uma tentação o enlace lirismo, tempo e ser humano. A sensibilidade dos versos é repassada de musicalidade, sob o signo de Orpheu, e de reflexão, sob o signo de Narciso. Reflexão sobre o tempo, o cronológico, o psicológico, o da emoção e o da memória, este destacadamente , e sobre a geografia físico-humana.
Descortinamos nesses poemas ressonâncias da arte de Fernando Pessoa e de José Régio; referencialmente na concepção de ser poético deste e na metamorfose do tempo e do “eu” daquele. Há um amálgama entre a dimensão poética e a complexidade do enigma humano-temporal e seus efeitos. A artista se insurge contra a desvalorização da subjetividade do sujeito e da renúncia à instrospecção. Mesmo com palavras, por vezes, de pedra, a expressão transcorre com leveza e fluidez. O que caracteriza um modo empenhadamente apolíneo-dionisíaco, inexcedível.
O canto lírico nos poemas concretiza a universalidade da dimensão humano-temporal que a tudo abrange. Os Helenos ressaltavam a questão de que o tempo é ladrão, rouba a tudo e a todos. E nós festejamos a cada ano, quiçá a todo o instante, o que nos foi roubado. Contabilizamos, como acréscimo, o que impunemente nos foi subtraído.
O perfil da poesia de Luciana é dado e motivado, principamente, pelo tema da memória e pela metamorfose do homem e do real; enredados na temporalidade, encarcerados na materialidade telúrica. O percurso estético prima pela sensibilidade do verbo e pela procura do que o vista. União entre o sensível, o inteligível e a forma; uma veste que o faça perdurar no tempo, gerando prazer, conhecimento e dor.
A poeta obliterou as ilusões pessoais e as culturais. A sua arte não é consensual, visto ser feita de encantos e desencantos. Comunhão entre a essência e a aparência, em que a lírica problematiza tudo o que a temporalidade abarca e o que banaliza os valores humanos.
Na nossa visão, Luciana é uma titã na poesia, cujo labor inscreve-se nas linhas e nas entrelinhas da sensibilidade responsável, revestida do enigma da memória no cárcere da língua. Não encontramos nos seus poemas superficialismos; considerando que a elaboração estética aflora em toda a criação, cuja nudez poética perpassa o labirinto da sua escrita, para melhor modelá-la. Assim sendo, a obra da autora encontra-se impregnada do dilema da inconformidade com a fugacidade existencial e com a expressão desse dilema. Posto que há uma busca para conquistar condições, meios e contextos para vestir e/ou despir essa expressão.
A vinculação da emoção com o pensamento resulta no valor da reflexão que incorpora. A tempestade nascida dentro do ser poético ecoa nas linhas e nas entrelinhas. Injusto seria não sublinhar a vidência lírica nessas entrelinhas e as portas que elas abrem. Com efeito, a autora diz: E o poeta bate forte em todas as portas.
A palavra poética é uma sereia que chama e seduz o poeta e o leitor. Este porque trás na mente e na sensibilidade o desejo, despertado por Hermes, de interpretar; aquele porque trás na imaginação, no sonho e na alma o ardor da criação, e nos versos o dom de Orpheu para a comunicação sedutora. O seu olhar perpetua o espírito da visibilidade, a sua palavra arquiteta os caminhos da escrita.
O investimento na expressão da interioridade faz com que a artista rejeite a determinação exterior. Porque não se sujeita, ela se torna exigente com os vocábulos que utiliza, aproximando-se do inusitado. Por contratempo, fere as palavras, tornando-as vulcânicas para fazê-las entrar em erupção, de forma atemporal.
De acordo com a nossa concepção, essa criação poética transcorre-se “escrupulosamente sem escrúpulos” no cumprimento da sua arte. Nesta, nas suas encruzilhadas, os desvios nebulosos se chocam. Nesses embates, em vista dos quais é tentado recuperar o tempo perdido, postulado numa identidade diversificada.
Os Troianos não consideraram as previsões de Cassandra, e por isso até hoje Tróia está a arder na nossa imaginação. Na turbulência pós-moderna, pode o poeta ser ouvido, e a sua obra ser lida e valorizada?
Sempre disse que admiro os poetas.
Como é que eles podem escrever, com
as mesmas palavras com que eu escrevo,
coisas tão mais belas?
                                 João Lobo Antunes

E o poeta bate forte em todas as portas
Não encontra o poema que deixou criança
E segue procurando em suas linhas tortas!
                                      Luciana Carrero

*Ione Marisa Menegolla, Professora Universitária, Pesquisadora e Escritora. Mestra em Letras, Doutora em Teoria da Literatura e Pós-Doutorada em Ciência da Literatura.
ionemenegolla@gmail.com 




        

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial