#Em familia #Novela "Em Família"
As canções dos bodes e a moderna novela televisiva “Em Família”
#Luciana
Carrero
A
tragédia nasceu no âmago da poética, aliada à forte tradição religiosa da
Grécia antiga. O estudo da etimologia da palavra “tragédia”, leva a um termo
“canções dos bodes”, em interpretação complexa e tradução livre para o
português. Estas apresentações ditas trágicas de tempos remotos, têm raízes nos
ditirambos, cantos ao deus grego Dionísio. Foram encenações criadas pelos
sátiros, seres meio bodes que circundavam Dionísio em suas orgias, sendo esta
uma visão mitológica eivada de crenças arraigadas.
Para
Aristóteles a tragédia resulta numa catarse da audiência. E assim ele justifica
o êxtase com que os humanos apreciam assistir ao sofrimento dramatizado.
Entretanto, em nosso tempo, nem todas as tragédias resultam num final
catastrófico, mas sim, não raras vezes, num final efetivamente catártico, no
mais amplo sentido, mercê do otimismo reconstrutor de autores modernos. Algumas
terminam numa atmosfera de dubiedade e até em finais felizes, como sói
acontecer, por exemplo, em novelas televisadas.
O
final trágico do Rei Édipo na tragédia de Sófocles é a auto-punição pela sua
culpa, com a qual não consegue viver; e nem vê perspectiva para purgar-se, que
seja digna da condição humana que idealiza para si mesmo.
A
função da tragédia é provocar pela instigação à compaixão e ao temor, a
expurgação ou purificação dos sentimentos (catarse). Estes sentimentos seriam
os dignificantes, levando à destruição da loucura de personagens a serem
sacrificados pelo orgulho de rebelarem-se ante as forças do destino.
Nietzsche
aponta o otimismo de Sócrates como o grande responsável por desviar a atenção
dos gregos das tragédias para a filosofia. De sua parte, os romanos parecem não
ter permanecido neste patamar da tradição dramática, enveredando para uma visão
adaptada das tragédias gregas, minimizando a presença do sentimento trágico; e,
por isso, tenderam mais ao melodrama, que influência, hoje, as novelas
televisivas.
Eurípedes
em "As Bacantes", coloca a chegada do deus Dionísio e neste contexto
procura problematizar a existência do inconsciente, propondo uma viagem ao
auto-conhecimento. “Dionísio é o deus da arte, o deus-espelho que reflete para
as pessoas o que elas são”. Munidas do auto-conhecimento, elas podem lidar
melhor com o que são e com o que os outros são, em busca do aprimoramento
pessoal e social. Abre-se assim o caminho para aceitar o diferente. Começa a
surgir o conceito humano, no sentido do ser que é, em si, um universo maior que
o da pólis. Também podemos ver o caminho para uma nova sociedade, com nova dimensão
individual, em que o indivíduo não precisa mais submeter-se à manipulação dos
deuses e torna-se senhor do seu destino.
Temos
personagens que, em oposição um ao outro, mostram realidades constantes de
díspares destinos, que paradoxalmente se interligam em questões de amor e ódio,
e isto a novela moderna aborda frquentemente. Situação que faz a trama das
tragédias. Em outra dimensão, Édipo (em “Colono”) perde a família e sua
cidadania, mas ele já é um indivíduo, e não se considera culpado por ter feito
tudo o que fez, pois ele não teve domínio de si. Vemos, um homem que desafia o
sagrado e a pólis.
A
partir do autoconhecimento, é possível encontrar forças em si mesmo e, assim,
não será mais necessário que os deuses controlem o homem, pois quando o homem
conhece a si mesmo, ele entende o homem, e portanto aceita o estranho, passando
a ter o novo conceito de humanidade.
Na
tragédia ou melodrama “Em Família", na magnífica trama do mestre Manoel
Carlos, inspirada nas tragédias, Luiza é Antígona e se encontra em uma situação
muito complicada, pois a família e a sociedade não querem permitir que ela
enterre o passado. Ela tenta fazer este sacrifício, amando Laerte, para passar
a régua no passado doloroso da sua família. Caso ela não enterre este passado,
sentir-se-á culpada por não tentar passar a régua no destino e refazer o ciclo
da vida, completando-o ao seu modo, para libertar a dor de sua família. Com
isto faz o sacrifício, não reconhecido por ninguém, de imolar-se pelo bem da
família. No entanto, se, como Antígona, enterrá-lo, ela cometerá um crime
contra a família visto que esta proibe que qualquer um enterre a sua dor.
Manoel
Carlos coloca, nesta novela, um problema complexo para o qual ele ainda não tem
solução: o sistema familiar e o sistema social, são excludentes, e não podem
viver em harmonia. A solução para o embate é dada nos capítulos que ele tece
rumo a um desejo de perfeição. Como numa visão de Eurípedes, a novela “Em
Família” reforça a importância do deus Dionísio, que é um estrangeiro, um outro,
mas ao mesmo tempo representa o auto-conhecimento e a valorização e aceitação
de si próprio para ser trabalhado no seu interior.
A
partir das tragédias modernas, começará a se desenvolver a filosofia
socrático-platônica, que desenvolverá o conceito de alma, de que o homem só
conhece o mundo quando conhece a si próprio, e vice-versa; e de que o maior
conhecimento é o conhecimento de si mesmo, ideal que Manoel Carlos, um figura
platônica do mundo moderno, preconiza para todo o grupo familiar, pelo menos na
novela, já que, na era da caliúga, parece não conseguir encontrar terreno
fértil para seus esforços em prol dos humanos brasileiros. Estes,
desastrosamente, malgradam de tudo que possa levar ao auto-conhecimento, numa
espécie de auto-piedade, a exemplo da “família principal da novela”
A
grande maioria da população brasileira, infelizmente não está preparada para
receber uma obra prima do porte desta novela global, fincada em raízes
profundas das Canções dos Bodes, mas que séculos depois, nossa gente, dominada
pela contra-cultura, não tem olhos benéficos para os esforços da Arte
construtiva, e a transformam e retratam com vilania, em seus conceitos.
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