Universo das Horas - de Luciana Carrero, Crítica Especializada
Universo das Horas, uma expressão liricamente metamorfoseada
Ione Marisa Menegolla*
Os poetas são, aliás, os
que mais
sofrem a angústia da
temporalidade,
angústia que está sempre
ligada ao
sentimento de “finitude”
concretizada
na morte.
Fernandes da Fonseca
Não há quem não se torne
poeta,
quando tocado pelo amor.
Platão
Escrever sobre o livro de poemas Universo das
horas, de Luciana Carrero, editado no final de 2013, cria-nos compromissos
inadiáveis. Mesmo sabendo, de acordo com Eduardo Lourenço, que: em sentido
radical não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo. O
que nos incita a vasculhar os meandros da produção estética e tentar incorporar
a emoção poética.
O que começou por nos atrair e acabou por
prender a nossa atenção foi e é o que aflora da poesia de Luciana, uma
intolerância quanto à complexidade do tempo e da existência humana. Nesse
contexto, o alcance estético e o poético se entrelaçam com liberdade,
sensibilidade, espiritualidade e saber.
A obra da autora reflete uma emoção como
expressão didática. A meditação sobre o tempo, o homem e os valores opera-se
pela via do sensível; porquanto é uma tentação o enlace lirismo, tempo e ser
humano. A sensibilidade dos versos é repassada de musicalidade, sob o signo de
Orpheu, e de reflexão, sob o signo de Narciso. Reflexão sobre o tempo, o
cronológico, o psicológico, o da emoção e o da memória, este destacadamente , e
sobre a geografia físico-humana.
Descortinamos nesses poemas ressonâncias da
arte de Fernando Pessoa e de José Régio; referencialmente na concepção de ser
poético deste e na metamorfose do tempo e do “eu” daquele. Há um amálgama entre
a dimensão poética e a complexidade do enigma humano-temporal e seus efeitos. A
artista se insurge contra a desvalorização da subjetividade do sujeito e da
renúncia à instrospecção. Mesmo com palavras, por vezes, de pedra, a expressão
transcorre com leveza e fluidez. O que caracteriza um modo empenhadamente
apolíneo-dionisíaco, inexcedível.
O canto lírico nos poemas concretiza a
universalidade da dimensão humano-temporal que a tudo abrange. Os Helenos
ressaltavam a questão de que o tempo é ladrão, rouba a tudo e a todos. E nós
festejamos a cada ano, quiçá a todo o instante, o que nos foi roubado.
Contabilizamos, como acréscimo, o que impunemente nos foi subtraído.
O perfil da poesia de Luciana é dado e
motivado, principamente, pelo tema da memória e pela metamorfose do homem e do
real; enredados na temporalidade, encarcerados na materialidade telúrica. O
percurso estético prima pela sensibilidade do verbo e pela procura do que o
vista. União entre o sensível, o inteligível e a forma; uma veste que o faça
perdurar no tempo, gerando prazer, conhecimento e dor.
A poeta obliterou as ilusões pessoais e as
culturais. A sua arte não é consensual, visto ser feita de encantos e
desencantos. Comunhão entre a essência e a aparência, em que a lírica
problematiza tudo o que a temporalidade abarca e o que banaliza os valores
humanos.
Na nossa visão, Luciana é uma titã na poesia,
cujo labor inscreve-se nas linhas e nas entrelinhas da sensibilidade
responsável, revestida do enigma da memória no cárcere da língua. Não
encontramos nos seus poemas superficialismos; considerando que a elaboração
estética aflora em toda a criação, cuja nudez poética perpassa o labirinto da
sua escrita, para melhor modelá-la. Assim sendo, a obra da autora encontra-se
impregnada do dilema da inconformidade com a fugacidade existencial e com a
expressão desse dilema. Posto que há uma busca para conquistar condições, meios
e contextos para vestir e/ou despir essa expressão.
A vinculação da emoção com o pensamento
resulta no valor da reflexão que incorpora. A tempestade nascida dentro do ser
poético ecoa nas linhas e nas entrelinhas. Injusto seria não sublinhar a
vidência lírica nessas entrelinhas e as portas que elas abrem. Com efeito, a
autora diz: E o poeta bate forte em todas as portas.
A palavra poética é uma sereia que chama e
seduz o poeta e o leitor. Este porque trás na mente e na sensibilidade o
desejo, despertado por Hermes, de interpretar; aquele porque trás na
imaginação, no sonho e na alma o ardor da criação, e nos versos o dom de Orpheu
para a comunicação sedutora. O seu olhar perpetua o espírito da visibilidade, a
sua palavra arquiteta os caminhos da escrita.
O investimento na expressão da interioridade
faz com que a artista rejeite a determinação exterior. Porque não se sujeita,
ela se torna exigente com os vocábulos que utiliza, aproximando-se do
inusitado. Por contratempo, fere as palavras, tornando-as vulcânicas para
fazê-las entrar em erupção, de forma atemporal.
De acordo com a nossa concepção, essa criação
poética transcorre-se “escrupulosamente sem escrúpulos” no cumprimento da sua
arte. Nesta, nas suas encruzilhadas, os desvios nebulosos se chocam. Nesses
embates, em vista dos quais é tentado recuperar o tempo perdido, postulado numa
identidade diversificada.
Os Troianos não consideraram as previsões de
Cassandra, e por isso até hoje Tróia está a arder na nossa imaginação. Na
turbulência pós-moderna, pode o poeta ser ouvido, e a sua obra ser lida e
valorizada?
Sempre disse que admiro os poetas.
Como é que eles podem escrever, com
as mesmas palavras com que eu escrevo,
coisas tão mais belas?
João Lobo
Antunes
E o poeta bate forte em todas as portas
Não encontra o poema que deixou criança
E segue procurando em suas linhas tortas!
Luciana
Carrero
*Ione Marisa Menegolla, Professora Universitária,
Pesquisadora e Escritora. Mestra em Letras, Doutora em Teoria da Literatura e
Pós-Doutorada em Ciência da Literatura.
ionemenegolla@gmail.com
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